quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Onomatopeia processual

Sem vontade, subiu as escadas pela terceira vez naquele dia. Sem vontade, porque a vontade não tem de acompanhar a mecanização ruidosa das acções, dos gestos e dos movimentos. Depois de subir as escadas, parou, colocou a mão no bolso das calças e, sem vontade, sentiu as chaves que daí a alguns instantes abririam a porta pela terceira vez naquele dia. Feitas as contas, a reiteração sêxtupla de acções sem vontade perfazia uma soma bastante respeitável... Uma soma que se multiplicaria por outras somas se a memória quisesse fazer frente a esse género de considerações. Como a vontade não era essa, as chaves cumpriram a função vaticinada e a porta abriu-se, aparentemente sem vontade, aparentemente respeitadora da falta de vontade de quem a vontade faltava. Para lá da porta, havia um espaço inadequado, imperfeito, semivazio e especialmente contra-indicado a corpos sem vontade de o habitarem. Não havia especial intenção neste espaço de constranger quem o invadia, mas há intenções que, não tendo existência, parecem inclinadas a desenvolverem-se apenas porque o inascível conflui geralmente para o padrão de tudo o que é gerado e nascituro. E pela terceira vez naquele dia, o espaço acolheu quem pela terceira vez subira as escadas e pensava, sem vontade, que pela terceira vez atravessaria aquele espaço assémico e incapaz. Na verdade, sabia que a falta de vontade era crónica, impassível e debitada numa oitava acima da permitida, mas não se lhe opunha nem a mascarava com processos paliativos. Recolhia-a na impossibilidade de mudança e tratava de a movimentar consigo, de lhe atribuir objectivos ou de lhe retirar ilações. Sem vontade, fechou a porta, nem sequer contabilizando que seria a terceira vez naquele dia que o fazia, e aterrou o olhar na textura das paredes e na inexactidão das cores circundantes. Não era um viveiro de formas nem de refracções lumínicas, mas um pequeno sumário de espessuras, asperezas e imprecisões tácteis. Suavemente caminhou até um dos cantos, onde outra porta o esperava, desta vez entreaberta e desta vez demonstrando menos falta de vontade em se abrir do que a primeira. Não houve automatismos, foi preciso esforço e ordem para continuar o caminho. Para lá dos verdadeiros motivos, havia falsas direcções e falsos propósitos. Mas sobretudo havia uma porta, que se seguira a outra porta e que, provavelmente, precedia outra, como se na sequência dos espaços compostos a lógica dos fenómenos físicos fosse aplicável. Em todo o ritmo subentendido nesta sequência, a falta de vontade era a dominante de uma escala que ainda se mantinha atonal e melodicamente indefinida. Não havia pretextos, não havia singularidades, não havia domínios temáticos. Serviam de abstracções as palavras que não pensava, os conceitos que não entendia, as suposições de que preferia ver-se livre. Tudo compassado numa linha sem preposições ou elementos de ligação, num encadeamento agramatical: escadas, chave, porta, espaço, porta. Pauta improvável, inabilmente composta, sonoramente monótona e apenas passível de uma única variação: porta, espaço, porta, chave, escadas. Sem vontade, refez o cenário e os adereços mantiveram-se serenos, moribundos, implacáveis no desinteresse pela cinética dramatúrgica. E, sem vontade, baseou-se na imaginação do polígono que era o espaço para lhe conferir um mecanismo próprio de funcionamento, como se em todas as horas houvesse minutos e em todos os minutos os segundos fossem certos...

3 comentários:

Junta-te ao clube disse...

E alguém ficou marado dos cornos...

Ass: Gattaca

Keroppi disse...

Há dias mais kafkianos que outros... E hoje era um desses dias mais que os outros. ;)

Anónimo disse...

adora poder descobrir como se escrevem certas palavras... e adora também saber que não é preciso estar sempre a repetir as mesmas palavras vezes sem conta: os sinónimos existem!
adora ler os seus textos... toda em aprendizagem!