Estas continuam a ser as minhas verdades...
E há momentos em que, de tanto bater, o coração para, momentos em que as pessoas normais têm algo de especial, momentos em que a respiração é ofegante sem sinal de cansaço, momentos em que a cadência do som embala, momentos em que a angústia se aceita como se fosse um órgão vital, momentos em que o esquecimento parece solução universal, momentos em que a incerteza é finitamente certa, momentos em que os pensamentos divagam pelos caminhos menos acidentados, momentos em que o tempo nos acolhe no compasso, momentos em que a grandeza dos outros não invalida a nossa vastidão, momentos em que as cores são vivas nas horas mortas, momentos em que o corpo dói como se a dor apelasse à confirmação da fisicidade, momentos em que a palavra é abafada pela certeza de que o gesto tem primazia, momentos em que o físico não responde ao metafísico, momentos em que o silêncio se volta contra nós mas não destrói, momentos em que o invulgar ameaça ser um contínuo quotidiano, momentos em que a aliteração dos gestos limita o caos da impaciência, momentos em que a improdutividade gera riqueza e a riqueza é apenas nominal, momentos em que os passos em volta são os passos concêntricos, momentos em que o deus das pequenas coisas zela temporariamente pelas grandes e tudo parece maior dentro da pequenez a que tudo está sujeito...
A haver pele, era a tua. A haver rosto, era o teu. A haver sinais, eram os teus. A haver carne, era a tua. A haver cabelos, eram os teus. A haver barba, era a tua. A haver pescoço, era o teu. A haver olhos, eram os teus. A haver peito, era o teu. A haver sorriso, era o teu. A haver lágrimas, eram as tuas. A haver gritos, eram os teus. A haver voz, era a tua. A haver braços, eram os teus. A haver dedos, eram os teus. A haver mãos, eram as tuas. A haver joelhos, eram os teus. A haver pernas, eram as tuas. A haver gestos, eram os teus. A haver sons, eram os teus. A haver silêncio, era o teu. A haver corpo, era a junção da tua pele, do teu rosto, dos teus sinais, da tua carne, dos teus cabelos, da tua barba, do teu pescoço, dos teus olhos, do teu peito, do teu sorriso, das tuas lágrimas, dos teus gritos, da tua voz, dos teus braços, dos teus dedos, das tuas mãos, dos teus joelhos, das tuas pernas, dos teus gestos, dos teus sons, do teu silêncio...
Gosto das manhãs contigo. Gosto dos atrasos propositados, gosto das tentativas de ignorar o despertador. Gosto de te ouvir passear pela casa enquanto me preparo para sair... Mesmo que não digas nada, mesmo que saiba que ainda estás pouco vigilante, gosto de te ouvir os passos, os sons guturais, o tilintar da loiça que manuseias, os armários que abres e fechas. Gosto de me cruzar contigo, mesmo que não troquemos palavras, porque o sono ainda é mais forte do que toda a vontade de falar. Gosto de te ver de costas enquanto te lavas, enquanto te barbeias, enquanto analisas os pormenores do teu rosto no espelho. Gosto da tua falta de sorriso matinal, do teu andar cambaleante, do teu ar de criança contrariada. Gosto dos teus beijos fugidios, porque achas que ainda não estás suficientemente higiénico para me fazeres respirar o teu ar. Gosto de ouvir a água correr enquanto tomas banho, e de saber pelos sons quais os gestos que repetes, quais os movimentos do teu corpo. Gosto de acordar com a tua presença, com o teu cheiro, com as tuas mãos, com as pernas que se entrelaçam de tal modo que muitas vezes não sei onde estou no meio de tanto corpo que somos. Gosto de sair quando ainda não estás pronto, quando ainda sei que vais demorar algum tempo para sair, que sairás algum tempo depois quando eu já estiver a muitos minutos de ti. E gosto de ter na minha memória toda esta rotina matinal, que esqueço durante o dia para que todas as manhãs tenham a novidade promissora das repetições que desejamos...
Quero ver os jacarandás contigo agora, quando derem flor e depois de terem perdido todas as folhas, todas as flores, todos os ramos, e apenas restarem os indícios das raízes que os alimentaram. Seremos talvez menos longevos que as árvores, mas poderão ser elas as testemunhas do nosso enraizamento... Porque elas sabem o que é beber do solo e não o esgotar, o que é usar a luz do sol e não obscurecer o que as rodeia...
Metade de um ano de trinta e um anos... Parece pouco mas aos poucos em seis meses aprende-se por vezes mais do que em seis anos, mesmo que pareça que já temos tudo aprendido e que nada de novo haja nos dias e nas noites que hão de vir. Mesmo que o cansaço nos vença e as palavras façam ricochete nas paredes que por vezes nos dividem, em retrospetivas paralelas e momentaneamente divergentes, o tempo parece querer dizer que a hierarquia das importâncias individuais se encaixa em todas as teorias da relatividade e que não há teorias mais importantes que a nossa persistência no que cremos e no queremos construir para além das nossas individualidades incontornáveis. Contornam-se as insensatezes, as imperfeições, as memórias mais acutilantes e retorna-se àquele ponto em que estávamos antes de sermos campo de batalha, antes que a quantidade dos despojos seja em demasia para as nossas forças e antes que desistamos de uma batalha que pode ter mais de um vencedor. Depois do armistício, reabrem-se as fronteiras, porque nestas nações não há termos de residência e a identidade é criada através das viagens que fazemos sem bagagens nem paragens obrigatórias, ainda que tenhamos de atravessar cadeias montanhosas e vales onde o eco pode confundir a nossa orientação... E depois de sermos turistas nos espaços que não são os nossos, regressamos a uma terra em que os sons, as paisagens, o horizonte, a luz e a sua ausência nos parecem mais familiares e descansamos para que as próximas viagens sejam apenas aquelas em que não somos mercenários nem carregamos armas que não sabemos manejar...
E ontem toda a gente eras tu, todas as ruas tinham a tua presença, todos os lugares tinham a memória de ti comigo, porque ainda estás em todo o lado e todos os lados te têm como se ainda estivéssemos presentes um com o outro... Procurava-te e fugia, sem saber se ajudaria olhar para ti e ter a certeza de que as tuas certezas são inabaláveis e que já sou apenas alguém que pontuou uns meses nos calendários da tua vida. Entre todas as multidões visíveis, a tua invisibilidade intranquilizava-me e era mais uma prova de que há silêncios que se conseguem ver e se concretizam na existência dos outros à minha volta e na tua inexistência entre eles...
Doem-me as palavras involuntárias e provocadas pelo fenómeno metafísico da reação à (re)ação... Doem-me os atos impensados e os pensamentos atuais. Doem-me os olhos por não os conseguir ter fechado depois da fuga irrefletida. Doem-me as últimas sílabas do ataque e as primeiras que não foram pronunciadas. Doem-me as efemérides que já não vão ser e a coleção de imagens das que já foram. Dói-me o que foi resgatado à pressa e que não poderá ser redistribuído. Dói-me o que foi escrito numa hora e contrariado em horas que vieram pouco depois. Doem-me as vozes fora de tom e o tom da agressão distante. Dói-me tudo...