Sacodes as mãos como se tentasses afugentar alguma ideia menos própria, algo que sabes que não consigo adivinhar apesar de tudo o que sei. Não tenho memória de ti tão pequena, tão ridícula, tão profundamente cansada. Lembro-me que eras forte, incansável, vigorosa como os alicerces da casa em que vivíamos, que, apesar dos sinais evidentes de decadência, continuava a ser o refúgio inexpugnável que fora no início da sua existência. Vejo-te as rugas, as mãos engelhadas, as costas curvadas como sereias escondidas entre rochas, as roupas escuras que passaste a envergar depois das mortes sucessivas que os anos te presentearam, as pantufas puídas, todos os tecidos, os teus e os das roupas, em uníssono, permanentemente gastos e num torpor irreversível. Perco-te aos poucos naquela sala, na rua, em todas as passagens em que me acompanhaste, em todos os caminhos em que a tua presença me fazia sentir menos vulnerável, menos anão perante a gigantude da existência dos outros... Queria recuperar-te como se recuperam as pinturas nos museus, como se dá vida nova à talha de ouro das capelas... Mas as manhãs para ti são uma continuação inalterada das noites e as noites o mesmo segmento de reta previsível... Passo-te a pele da palma das minhas mãos sobre a pele do interior do teu braço e a pele - a tua ou a minha, não sei bem... - repudia-me. Lavo-te o rosto sempre pensante sem pensar porque não quero saber porquê, nem agora nem antes nem depois quando os meus olhos não puderem confirmar-te nos meus pensamentos. Às vezes ainda penso que preciso de ti como eras, não como és, não te quero impassível, dorida, imóvel, mutável, invertebrada e transparente. Não fujo de ti nem te procuro, não permaneço porque queres que permaneça, apenas porque há pedaços de nós cuja ordem natural não questionamos, mesmo quando a ordem já não faz sentido no meio do barulho que já não fazes. Queria-te sonora, queria-te sólida, queria-te geométrica, queria-te apenas como te quero agora mas um bocadinho mais como te queria antes.
E agora que te vejo, que te sinto, que oiço os simples sons dos complicados processos fisiológicos que te perseguem, só quero saber o mesmo que queria quando ainda não eras a carne que és, quando tinhas as mesmas pernas, os mesmos braços, o mesmo peito, as mesmas costas, o mesmo cabelo, as mesmas mãos, os mesmos olhos, só que tudo ao revés...
E agora que te vejo, que te sinto, que oiço os simples sons dos complicados processos fisiológicos que te perseguem, só quero saber o mesmo que queria quando ainda não eras a carne que és, quando tinhas as mesmas pernas, os mesmos braços, o mesmo peito, as mesmas costas, o mesmo cabelo, as mesmas mãos, os mesmos olhos, só que tudo ao revés...
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