O vento a deslizar as árvores, o vento e o sol juntos a castigarem os carvalhos, as laranjeiras, os jacarandás, e eu na janela, a reparar nas manchas e no pó que se acumulou. "Sai daí, por favor, sai daí... desce...", a mesma janela, a mesma sala, mas numa hora e num dia diferentes, porque o tempo também é castigado e nós por ele. Eu, eu outra vez aos 12 anos, eu outra vez a ter medo do mundo, do mundo para lá da porta, a porta antes da fera que me ia comer porque não havia maneira de me defender da inevitabilidade do exterior. "Nem que fosses o último homem do mundo", outras palavras, a caminhada por cima do cascalho até chegar à estrada, dessa vez acompanhado, uma grande parte das vezes sozinho, sempre a olhar pelo ombro, sempre a recear a voracidade das feras, porque as bestas quando se soltam são esquivas e escondem-se para melhor agarrar a presa. Eu de olhos no chão, a ver o movimento das pedras, o som das pedras, o meu som nas pedras, o som que não queria ouvir das pedras dos outros... "Quero chegar a casa, quero fechar-me", não quero saber que há vida para lá da porta pesada que se fecha com quatro voltas de chave, e não quero correr, mas quero correr, porque se correr chego mais depressa e mais depressa esta hora passará para outra hora em que não há pedras, só eu e as paredes da minha fortaleza. (E tu, agora aí, deitado, tu agora aí, e eu sem saber porquê, sem saber porque quero sair mas quero ficar e agarrar-te, e nunca mais te deixar sair de mim, e tu agora aí, sem saber a razão das minhas lágrimas, sem saber que inundei a casa com os meus olhos, que os meus olhos vêem melhor agora apesar de turvos e salinos.) Pela primeira vez separo o trigo do joio, pela primeira vez aperto as verdades contra as incertezas. A campainha, a campainha a tocar para fazer a recolha, a paz perfeita do único refúgio na imensidão dos edifícios, a paz perfeita depois da fuga, no mato que era cerrado e arranhava as pernas, os braços, que deixava marcas na cara e nos olhos, e nas palavras que não saíam de mim mas saíam dos outros, e nos gestos que sentia de fora e que não saíam de dentro. (Sim, não sabes, mas dói tanto agora, dói tanto como doeu na altura, dói tanto porque as feridas abriram outra vez, e eu outra vez desprotegido, e eu outra vez minúsculo no meio dos gigantes, e eu outra vez sem braços à volta, outra vez apertado em mim mesmo.) E o reflexo dos espelhos a responder o que não queria, e eu a evitar o reflexo e a tentar escapar à Medusa, e as serpentes sempre a provocarem, e as vozes de que tinha medo, que se transformavam em gestos e violência, em golpes, e a misericórdia que nunca chegava, a bonança que nunca vinha depois da tempestade. Ainda oiço os trovões, lá ao longe, mas ainda os oiço, à parte de mim, mas de vez em quando a tonitruância aproxima-se e a dor aumenta com o som, ainda que os relâmpagos sejam menos nítidos com todos os filtros da consciência... (Toco-te para te sentir respirar, tu aí que me salvas quando te aproximas, quando as tuas mãos se tocam atrás de mim, e eu respiro de alívio durante uns momentos em que não há memórias nem palavras reminiscentes, apenas a minha cabeça escondida entre o teu rosto e os teus ombros, entre o tecido e a tua pele, entre o calor do teu corpo e a salinidade das minhas lágrimas.)